Baú de contos: Clác!

 


           

            Despertei subitamente ao ser atingida por um sopro forte e repentino!
            Senti o meu velho corpo a ranger quando duas fortes mãos arrancaram-me da escuridão e atiraram-me para um mundo de claridade ofuscante.
            Estremeci com o estrépito quando me pousaram sem cerimónia em cima de uma mesa. As imagens turvas e difusas começaram a ganhar nitidez até finalmente ser abraçada pela familiar visão do interior da velha biblioteca.
            — Mas o que é isto! Que relíquia, já não via uma coisa destas há muito tempo! — disse um homem de aspeto obeso e a cheirar a tabaco.
            Soprou novamente sobre mim, espalhando incontáveis partículas de pó que encheram a sala com uma neblina que se intensificou a cada novo assopro. O homem, claramente ofegante, terminou a sua laboriosa tarefa. Afastou-se vagarosamente, levando consigo a caixa onde permaneci reclusa tanto tempo. Perdi-o de vista no fim de um longo corredor ladeado por imensas prateleiras carregadas de livros.
            Enfim, escrutinei a paisagem estéril e muda. O lugar estava quase igual! Os enormes vitrais ainda filtravam a luz da mesma forma. Lá em cima, a abóbada ainda envolvia o recinto com o mesmo conforto de outrora. Só um conjunto de mesas brancas, dispostas em fila, destoava das recordações que tinha daquele sítio. Um espelho pendurado numa das paredes convidou-me a fixar o olhar no seu reflexo. Pouco restava da minha aparência original; quem diria que fora em tempos uma “Royal”!
            Quantas mãos teriam utilizado as minhas teclas? Quantos manuscritos teriam sido escritos às minhas custas?
            As memórias fugiam de mim como ratos a escapar de um naufrágio; sabia apenas a triste figura que apresentava. O meu teclado, encravado e coberto de teias, estava desprovido de qualquer utilidade.
            O bibliotecário retornou com um pano e uma mala.
            — Vou deixar-te como nova! Já estás aqui ao abandono há demasiado tempo.
            Com esta declaração, iniciou um processo que durou várias horas. Enquanto cuidava do meu corpo sujo e enferrujado, mantinha um hábito que, devo confessar, trouxe-me algum conforto e segurança. Tinha o costume de, à medida que trabalhava, murmurar num sussurro quase inaudível. Como se estivesse a ter cuidado para não me acordar.
            — As pessoas esquecem tão depressa aquilo que já não precisam, não achas? Até eu… fui arrumado para o lado. — disse ele enquanto desmontava o teclado.
            Retirou cuidadosamente cada tecla e limpou os resíduos de tinta seca acumulados nas ranhuras metálicas.
            — Antes, eu é que tomava conta de todos os livros que iam e vinham. Falava com as pessoas, e elas contavam-me o que andavam a ler…
            Aplicou uma fina camada de óleo nas hastes dos tipos. Senti-me a ganhar fluidez após anos de rigidez e poeira!
            — Dava sugestões de leitura e assim havia ligações fortes entre livros e leitores. Agora… fui substituído por computadores! — comentou, enquanto esfregava com paciência a fita cravada de tinta endurecida.
            — Passo os dias a arrumar livros que já não leio, em prateleiras que já não catalogo…
            Mordeu a língua e arregalou os olhos enquanto ajustava os pequenos carretéis que seguravam a nova fita. Puxou-a pelos guias metálicos até que ficasse perfeitamente esticada.
            Notei nele um vigor crescente. Parecia que as engrenagens que ele restaurava eram as suas, pois o seu semblante mudava à medida que progredia no restauro.
            Até eu, parecia ganhar um sentido de identidade mais firme. Sentia perfeitamente todos os procedimentos: o girar do parafuso do carro da máquina, o deslizar mais suave após a remoção da ferrugem e a áspera sensação da lixa fina ao ser passada pelo cilindro de borracha.
            Ele sorriu ao ver a marca nítida da tinta no papel após pressionar a tecla “R”, e eu senti um pulsar, como se estivesse a regressar à vida. Ao olhar para ele, percebi que o seu rosto espelhava essa transformação. Os dedos sujos de tinta, a respiração calma, o olhar vibrante… Era como se ele tivesse retornado à glória dos seus melhores dias. Ambos sentimos orgulho ao contemplar as teclas limpas, meticulosamente alinhadas, sobre um pano de algodão.
            O restauro estava quase concluído. As minhas peças estavam renovadas. A maneira como ele suspirou ao passar os dedos sobre mim, levou-me a concluir que o mesmo podia ser dito dele.
            O dia havia sido longo, mas proveitoso. Por fim, adormeci enquanto contemplava a ténue luz das estrelas que, naquela noite, decidiram desafiar a opacidade do vitral.

***

            Despertei subitamente com uma sensação de calor, movimento… respiração! Um bulício completamente diferente da minha postura estática; havia mais, muito mais. Senti uma leve dor nos ombros à medida que os endireitava.
            Dor!? Ombros!? Então, onde estavam as minhas engrenagens?
            A sensação mecânica e repetitiva dos movimentos invariáveis desaparecera. Estava num estado de fluidez, não só corporal, mas também emotivo. Agregado ao meu espanto misturavam-se emoções que não eram inteiramente as minhas. Indivisíveis de uma maneira tão simbiótica!
            Entrei na biblioteca e vi dezenas de pessoas ao redor de algo colocado sobre uma mesa. Aproximei-me e, lá estava!
            Imponente, no centro.
            Restaurada e admirada, a minha velha carcaça reluzente!
            — Sim, é a original de 1949! A célebre Royal Quiet Deluxe, tão popularizada por Ernest Hemingway. – disse eu, mas a voz que saía não era a minha.
            Era a dele!
            Reconheci naquele momento o corpo em que agora habitava. A sua voz e os seus dedos manchados de tinta eram inconfundíveis.
            A palestra acerca de escritores, máquinas de escrever e diferentes técnicas de restauro duraram toda a manha. A cada momento, senti-me cada vez menos como uma espetadora, e mais como uma interveniente ativa em todo o processo. Como se fossemos um só, o coletivo de ambos a transcender a individualidade.
            Sem contar, a hora do almoço chegara e trouxera por companhia uma fome que não admitia indiferença.
            Após um merecido período de descanso regressamos à biblioteca, para junto da minha antiga estrutura, pois sentimos um desejo irresistível. Se o meu, se o dele, não o sei; mas ao vermos a máquina, hesitamos. Olhamos em volta disfarçadamente e então, num sussurro, como se estivéssemos a ter cuidado para não a acordar, segredamos:
            — Vês? Antes, eras uma engrenagem. Agora, és uma história. Há um lugar para todos… mesmo para aqueles que julgamos não ter nenhum.
            Não resistimos. Adorávamos aquele som. Fechamos os olhos, respiramos fundo e carregamos numa tecla.
            Clác!



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