Baú de Contos: A Casa dos Ecos
O coração de João bateu como uma locomotiva a todo o gás ao ser confrontado com o cenário tão familiar. Até ali, havia sido apenas uma fotografia guardada; uma simples reminiscência. Agora, que a realidade se impunha de uma maneira tão crua, as imagens eram escoltadas por uma miríade de emoções. Jurara a si mesmo que nunca mais voltaria, mas aquele lugar sugara-o de volta. Como um buraco negro, devorador de luz, um único segundo bastou para que a mágoa ressuscitasse. Viu-se de novo ali, na última tarde com ela…
Só o silêncio e o vazio divergiam das suas lembranças: nem uma pessoa, nenhum carro estacionado e nem o cantar dos pássaros se ouviam.
Percorreu as pedras da calçada daquelas ruas que antes havia cruzado diariamente. Ao passar pela casa do velho casal, que tantas vezes havia visitado, parou. Deixou-se inundar pelo cheiro dos limões que haviam ficado por apanhar e respirou fundo. Já não eram vivos com certeza, pensou. Não seria de admirar, vinte anos de ausência teriam as suas consequências. Demasiado tempo para alguns, mas não o suficiente para ele. Fugira da aldeia para escapar às memórias dela que viviam em cada esquina, mas esse esforço revelara-se dolorosamente infrutífero. A morte tinha-a levado, mas a sua presença havia perdurado.
Retomou o caminho e atravessou a velha ponte de pedra. O som fresco e vibrante do pequeno riacho contrastava violentamente com o vácuo que parecia sufocar tudo o resto. Um cheiro subtil a lenha queimada pairava no ar. Relembrou-lhe o conforto de outros tempos passados à lareira. O frio pareceu ainda mais cortante; apertou o casaco e penetrou adiante naquela manhã de outono.
Apenas alguns minutos foram necessários para, ao contornar o desgastado caminho, avistar o seu antigo lar.
Podia até não passar de uma casa banal, mas aos olhos de João era muito mais. Ali, os sentimentos atuavam num teatro vivo de saudade e recordações. O portão estava aberto num convite esboçado; uma tentação forte de mais para ser ignorada.
Entrou.
Do pátio conseguia ver o quintal lateral onde uma enorme árvore crescia livre e indomável. A sua altura ultrapassava largamente a do telhado. A casa parecia aninhar-se numa tentativa de se esquivar dos enormes ramos que brotavam do maciço tronco.
Foi então que reparou.
Estacou congelado na direção da porta de casa. E ajoelhou-se, desprovido de qualquer vigor.
O peito apertado, esmiuçado pela incredulidade.
Lá estava ela.
Inconfundível e inalterada.
Viva.
A sua mulher.
— João… voltaste! Entra, o almoço vai já para a mesa!
Ficou pálido ao ouvir a sua voz. Seguiu-a fixamente com o olhar até ela desaparecer no interior da casa.
Com uma descarga de energia, levantou-se e perseguiu-a apressadamente. Atravessou o limiar da entrada e ouviu um som vindo da cozinha que o impeliu a entrar nessa divisão. Estava completamente vazia, mas um leve aroma a especiarias ainda se fazia sentir.
Passos no andar de cima!
João subiu rapidamente pelas escadas. Os ecos ainda subsistiam, mas quando alcançou o patamar, nada viu.
Um leve riso cortou a quietude do momento. Correu na direção de um dos quartos como um desalmado. Ao entrar perscrutou o espaço, desprovido de qualquer mobília. Notou um movimento indistinto vindo da varanda.
Após dois puxões desesperados para abrir a janela, pôs-se à varanda. Nada viu para além da imensa sombra projetada pelo colossal Plátano.
— Devo estar a perder o juízo! Tenho de ir embora daqui, enquanto ainda consigo ter a noção das coisas!
Algo desnorteado desceu as escadas. Colocou uma das mãos na parede para tentar controlar uma leve vertigem e foi parar à sala de estar. Visto do lado de fora da porta, a divisão apresentava-se nua, à semelhança do resto. No entanto, assim que atravessou a ombreira da porta, tudo mudou. Todo o espaço encheu-se de claridade, som e movimento. A música estalou a fragilidade quieta. O cantar dos pássaros ouviu-se pela primeira vez, lá fora, desde que chegara à aldeia. Um sofá impôs-se à sua frente, aparentemente do nada e uma grande mesa desenrolou o seu comprimento como se de uma folha de papel se tratasse.
Aturdido, aproximou-se da janela para escapar a toda aquela loucura.
Arregalou os olhos.
Do lado de fora, logo após os limites do seu terreno, viu a aldeia a fervilhar. Carros a atravessar a ponte anteriormente tão desolada e pessoas a explorar as vielas que ainda há minutos estavam desprovidas de vida.
Respirando ofegantemente, deu uns passos atrás. Precisava escapar daquele redemoinho insano que desafiava a razão. Ao colocar os pés fora de casa, foi como se uma pesada bigorna esmagasse toda a imensidão.
Puro silêncio.
Exausto, João deixou-se abater num soluçar incontrolável. Aninhou-se de mãos postas no rosto e derramou todo o seu luto.
Ali, onde fora tão ditoso e, ao mesmo tempo, tão desafortunado.
Uma mão tocou-lhe de leve nas costas; João, mesmo sem olhar, sabia exatamente quem era.
— Desculpa! — disse entre prantos. — Saí daqui para desprender-me da tua lembrança, mas o meu coração continuou preso a este lugar… a ti. Não cumpri o que te prometi. Simplesmente não consegui continuar em frente.
Limpou as lágrimas com a manga do casaco e girou a cabeça para a ver.
Não viu ninguém, mas ainda sentia o toque quente nas suas costas.
Levantou-se lentamente. Olhou uma última vez para a sua antiga morada e despediu-se do plátano antes de lhe virar as costas.
— Cuida do lugar, está por tua conta. Não faças como eu, continua a viver…
João sabia que estava na hora de confrontar o que havia sido e o que agora era.
Pesarosamente tornou a sair e fechando o portão, avançou.
Atravessou a ponte centenária e percorreu toda a extensão da aldeia, refazendo o caminho inverso. Mais uma vez não se cruzou com ninguém e nem o chilrear dos pássaros o acompanharam até chegar ao seu carro.
Girou a chave no canhão, ajeitou o espelho retrovisor e, embalado pelo ronronar do motor, deixou a povoação para trás.
A estrada subiu pelo monte durante vários minutos até chegar ao topo. Lá existia um conhecido miradouro que mostrava toda a paisagem rural do vale. Dali conseguiria ver a sua antiga aldeia. Quem sabe, até mesmo distinguir a velha ponte e parte da sua prévia moradia.
Parou o automóvel e dirigiu-se ao varandim de madeira.
Teve de se apoiar firmemente no corrimão para não cair assim que lançou o olhar na direção da aldeia que ainda o chamava.
Toda a extensão daquele lugar, assim como toda a colina adjacente, exibiam uma cor negra resultante de um terrível incêndio.
Tudo havia sido consumido.
Apenas subsistiam a solitária ponte de pedra e o esqueleto enfarruscado de um enorme plátano, que parecia ter guardado o seu conselho.
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