Baú de Contos: Memórias de Papel

 




           

A luz irrompeu violentamente pelo sótão dentro quando Teodoro, de um só lanço, abriu a portada da janela. A manhã fria e solarenga daquele fim de semana de inverno era a companhia ideal para uma limpeza geral.
O cenário era constrangedor.
Como foi que deixamos as coisas chegarem a este ponto? — interrogou-se.
Com um dedo, desenhou uma linha no espesso manto de pó que se havia instalado numa velha cómoda. Abanando a cabeça em tom reprovador, avançou. Várias caixas empilhadas dificultavam o caminho, e quase tropeçou numa das pilhas de roupa e sapatos. Resignado, abriu um dos sacos de plástico que transportava e começou a entediante tarefa de os recolher. Sobras de quando tinham mudado para aquela casa. Desde esse dia, ninguém da família havia sequer colocado ali os pés. Isso era evidente. O cheiro a mofo e o pó fizeram-lhe soltar um espirro, atirando-o contra um monte de caixas empilhadas.
Tudo desmoronou.
— Bolas! — vociferou ao pontapear agressivamente um pequeno baú que lhe caíra aos pés.
O conteúdo espalhou-se por toda a divisão. Teodoro arregalou os olhos e bufou. A sua paciência estava no limite.
— Nem pensar que vou passar o dia aqui enfiado! Já basta o aborrecimento do trabalho diário… É melhor nem pensar nisso.
Limitou-se a apanhar parte de uma resma de papéis, pousou-os na cómoda e rumou em direção às escadas.
Uma memória perdida estacou os seus passos. Aquela papelada parecia-lhe familiar. Voltou e deu uma vista de olhos mais atenta pelos inúmeros manuscritos recolhidos.
Uma sensação nostálgica tomou conta de si e desprendeu um sorriso sorrateiro. Eram histórias que escrevera décadas atrás, numa altura em que os dias eram mais calmos e o sol brilhava com outra intensidade. Nisto, uma figura surgiu por entre as palavras e materializou-se ao seu lado.
— Há quanto tempo não te via! — exclamou Teodoro.
— Demoraste, mas vieste visitar-me, mais vale tarde que nunca! — replicou ironicamente uma versão bem mais jovem dele próprio.
— Tive de ir trabalhar! Deixei de ter o tempo que tu tinhas… casei, tive um filho… essas coisas ocuparam o meu tempo. Isso e a necessidade de dar o melhor à família… foi trabalho duro… estive ocupado a construir a minha vida!
— A nossa vida! — interrompeu o jovem.
Aproximou-se e tocou levemente no peito de Teodoro.
— Eu continuo aí dentro, caso não saibas.
— Imagino que sim… se bem que às vezes mais pareces uma memória distante — disse Teodoro, enquanto apanhava mais um maço de cadernos e folhas do chão.
— Vou resolver esse problema. Anda comigo! — disse o rapaz, enquanto o convidava com um gesto do dedo indicador.
Teodoro hesitou por um instante. Mas antes que pudesse protestar, tudo ao seu redor começou a mudar.
O sótão desaparecera, e no seu lugar uma luz ofuscante tomara conta do espaço.

***

Quando abriu os olhos, estava numa vila à beira-mar, onde cada rua deixava o cheiro da maresia dobrar as suas esquinas.
As pedras da calçada irradiavam o calor da tarde, enquanto o som fresco da ondulação a desfazer-se no areal compunha uma canção harmoniosa.
Teodoro, num misto de emoções, deu alguns passos em frente.
— Esta é a aldeia onde nasceu o meu pai! Não a via há décadas… vinha para cá todos os verões! Mas, como é isto possível?
Um grupo de miúdos passou por ele rindo, brincando e correndo em direção à praia. Reconheceu imediatamente um deles. Era ele próprio ainda criança!
— Oh, oh! Ainda te lembras de algumas coisas! — disse o jovem Teodoro, aparecendo de repente. — Sonhar não era difícil nesta altura, pois não?
— Não… difícil foi o não esquecer de sonhar — respondeu Teodoro, fixando o olhar na pequenada. O jovem piscou-lhe o olho e a aldeia à sua volta ondulou como um mar revolto. Engolido pelo turbilhão, deixou-se levar pela corrente.

***

Inspirou sofregamente como se tivesse emergido da água. Deu por si no seu antigo quarto de infância. Já não estava na vila. Diante dele a sua avó contava uma história a uma pequenita versão de si próprio, sentada na beira da cama. O ritmo melancólico da narração transportou-o para lá das janelas do pequeno quarto. Formou-se uma imagem, criada com o poder das palavras.
Viu a carcaça de um castelo a rasgar um cenário tempestuoso.
Sentiu a chuva, a embater nas suas frias paredes.
Cheirou o aroma a terra e granito molhado e assustou-se quando um trovão ecoou na solidão dos seus átrios.
Vivenciou o desespero de um viajante que ali procurava abrigo.
— Nesta altura acreditar era fácil, mas o realizar parecia tão distante — interveio o jovem, despertando Teodoro do transe.
As imagens perderam a sua nitidez e extinguiram-se no horizonte. No seu lugar surgiram cenas sobrepostas, palavras ditas e por dizer, decisões e arrependimentos… tudo em dissonância simultânea.

***

Então, o zumbido parou. Estava de volta ao silêncio do sótão.
— Há um preço a pagar para continuar a sonhar, mas costumavas acreditar que valia cada segundo do teu tempo.
O jovem olhou-o de frente com uma expressão séria estampada no rosto e continuou:
— Escrever é mais do que simplesmente debitar palavras numa página. É um pacto com aquilo que aspiramos ser…
— E esse pacto já está quebrado há tempo suficiente — interrompeu Teodoro.
A cara do jovem voltou ao seu sorriso aberto, uma última vez, antes de desvanecer completamente.
Teodoro segurara aquelas folhas amareladas todo esse tempo. Apesar da brisa fria que entrava pela janela, sentia-se quente por dentro. Aquelas histórias quase esquecidas eram um convite: ser verdadeiro consigo próprio.
Havia ignorado parte de si em favor da praticabilidade.
Carregara as cicatrizes dessa decisão diariamente.
Apanhou as restantes folhas soltas e colocou tudo cuidadosamente no baú. Acabou de encher mais um saco de tralha e desceu as escadas. Mas o Teodoro que desceu era diferente do que aquele que havia subido. Este, enfim, voltara a sonhar.

As histórias não terminam quando fechamos o livro. Continua esta reflexão na crónica:
 
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Comentários

  1. Muito bem escrito, mas não será para qualquer um, devido ao grau de dificuldade e complexidade de algumas palavras! Mas uma excelente escrita, exposição e organização. Parabéns… pela abertura do baú, ficamos mais ricos e mais completos.

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    1. Muito obrigado pelo teu comentário e pelas palavras de incentivo! Fico feliz por saber que apreciaste a escrita e a forma como organizei este espaço. Compreendo que o estilo e a escolha das palavras possam tornar a leitura mais densa para alguns, e vou ter isso em conta ao aperfeiçoar futuros textos. O objetivo é sempre encontrar o equilíbrio entre profundidade e acessibilidade, sem perder a essência. Espero continuar a contar com a tua leitura e opinião nos próximos contos!

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    1. É gratificante saber que este texto fez refletir. Obrigado pela partilha!

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  3. Respostas
    1. Que bom saber que gostaste! A tua leitura é muito apreciada!

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  4. Respostas
    1. Que maravilha saber que foi do teu agrado! O teu tempo de leitura é um presente que significa muito para mim!

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