Baú de Contos: O Paradoxo da Gaivota - Capítulo 1 [Três Perspetivas de um Balão Vermelho]
Capítulo 1
Três perspetivas de um Balão Vermelho
Um deslumbrante balão vermelho escapou por entre os dedos de Rita, devido à força do vento que decidiu pregar uma partida naquela tarde quente e ensolarada de verão. A criança, surpreendida, limitou-se a acompanhar o seu voo por cima das barracas e roulotes que se estendiam em redor da feira popular. A miúda era do tipo que não aceitava aquilo que não havia pedido e, por isso, bufando e estendendo os braços na direção do balão, correu. Os seus cabelos loiros esvoaçavam por entre a multidão como um cometa a furar um campo de asteroides.
Vou apanhar-te!, pensou ela quando avistou novamente o balão entre o topo de duas tendas.
Mas o avistamento de nada serviu; estava completamente fora de alcance. Resignada, colocou os braços nas ancas e contemplou uma última vez o já pequeno ponto vermelho que mal se distinguia num céu pintado de um azul magnífico.
— Nada a fazer! — disse para si mesma com uma careta aborrecida estampada no rosto e tentou retroceder pelo caminho que tão apressadamente havia percorrido.
Não demorou muito a compreender a razão pela qual o seu pai a havia advertido: “Nunca saias do meu lado!”. Parecia a cada instante o conselho mais sábio do mundo. Tinha quase certeza de que viera por trás da banca das gomas; ou teria sido pela frente da tenda do tiro ao alvo? Numa outra tentativa de se orientar, viu ao longe o vendedor de balões. Os seus olhos azuis arregalaram-se e um sorriso luminoso surgiu triunfante. Ela estivera ali momentos antes e dali seria muito mais fácil achar o seu pai; ou até mesmo pedir ajuda ao simpático senhor que lhe havia oferecido o balão.
Caminhou em passo rápido na direção escolhida e parou de repente. Deu alguns passos para trás ao ver uma tenda assustadora no seu caminho. Toda a barraca estava ornamentada com desenhos esotéricos misturados com figuras de fantasmas e cenários de tempestade. Caveiras de plástico pendiam de fios amarrados a uma estrutura metálica que acolhia dois assustadores esqueletos de cada lado da entrada. No letreiro, estava escrito com tinta vermelha escorrida: “A Cabana do Horror”.
Com medo, Rita fugiu na direção contrária; teria que encontrar outro caminho, pois ali não passaria, disso tinha a certeza.
Um pequeno riacho dividia a feira, e uma bonita ponte de madeira unia as duas margens. Do outro lado, o cenário parecia bem mais apetecível.
— Se for pelo outro lado, talvez consiga chegar aos balões; ou também podia pedir ajuda, mas eu já sou grande! Consigo sozinha — concluiu ela.
Iniciou a travessia da pequena ponte e parou no meio. Olhou para as águas que corriam suavemente, onde, entre algumas pedras, rãs coaxavam e saltitavam. Rita achou imensa piada e deixou-se ficar mais um bocadinho.
Sem qualquer aviso, ouviu passos a correr.
Mal teve tempo de se virar quando um vulto ofegante embateu nela.
O embate foi tão repentino quanto violento e projetou a miúda por cima do diminuto parapeito. A última coisa que Rita viu foi o mundo a andar à roda antes de um choque curto e quase desprovido de dor transformar o seu mundo em escuridão.
***
— E aqui tens um balão, linda menina! — disse o senhor Ernesto ao entregar um balão vermelho a uma rapariguinha de ar muito castiço. Ainda a sua loira cabecinha não havia saído da sua visão periférica quando avistou um sujeito encapuçado vestido de preto.
— Outra vez! Já anda por aqui a rondar há algum tempo e, decididamente, não tem ar de quem veio comprar pipocas.
Tentou não o perder de vista enquanto entregava dois balões coloridos a um par de gémeos vestidos de igual. Eventualmente, perdeu-o no meio das tendas e do aglomerado de pessoas que se juntava cada vez em maior número.
O sol estava no seu pico e o suor escorria-lhe profusamente pela testa abaixo. Começou a enxugar-se ao mesmo tempo em que avistou um balão vermelho levitando em direção ao firmamento.
Quem ficou sem aquele certamente quererá outro, pensou, e retomou o seu famoso assobio, reconhecido por todos lá no evento.
Atendeu mais dois clientes e começou a fazer contas ao lucro do dia.
Estava ainda a meio dos seus cálculos quando reparou novamente no homem de preto. Ele corria por entre as pessoas, ora empurrando umas, ora desviando-se de outras.
— Já sabia, arranjou confusão, de certeza. Identifico um larápio a milhas!
Seguiu o percurso do homem suspeito e traçou mentalmente a trajetória do seu destino.
Vai querer fugir do recinto, e para isso vai ter de atravessar a ponte… Eu já te apanho! — disse entre dentes.
Prendeu os fios dos balões flutuantes ao peso que estava ao seu lado e correu em direção à ponte.
Como calculado, o indivíduo corria na direção estimada. Conseguiria apanhá-lo mal atravessasse o riacho.
Corriam quase lado a lado, em margens opostas do riacho. Os quilos a mais e a falta de exercício atrasaram-no alguns segundos preciosos. Ele começou a ficar para trás, mas não desistiu.
A escassos metros da ponte, já só conseguiu ver, totalmente impotente, a trágica sequência do fugitivo a embater brutalmente numa pequena miúda que ali estava. Ainda em passo de corrida, presenciou o pequeno corpo a cair e a precipitar-se no leito repleto de pedras.
O encapuçado, mal reconheceu o embate e, sem sequer olhar para trás, alcançou a margem oposta no exato momento em que Ernesto chegava à extremidade da ponte.
Ernesto tinha os olhos fixos no corpo caído e já nem olhava para o homem de preto quando foi atropelado por ele, e ambos rolaram pelo chão. Atabalhoadamente, o fugitivo levantou-se e seguiu caminho, desaparecendo atrás de uma das roulotes.
Ernesto, a muito custo, levantou-se e caminhou lentamente para a margem. Tinha uma mão a pressionar a barriga, onde um abundante fio de sangue jorrava, manchando a camisola de vermelho e deixando para trás pingos encarnados. O cabo de uma pequena navalha extrudia por entre os seus dedos e a sua visão começou a entrar numa lenta vertigem. Com visível e doloroso esforço, desceu a encosta da margem, levantou a cabeça da criança que estava submersa e agarrou o seu pequeno corpo, puxando-a para si.
— Oh, meu Deus! É a menina a quem entreguei o balão ainda há pouco…
A sua respiração tornou-se bem mais pesada e as suas forças desvaneceram como uma onda a desfazer-se ao atingir o areal. Deixou a cabeça cair para trás e ainda conseguiu ver alguém a espreitar do cimo da ponte, antes de mais nada sentir.
***
Os olhos de Gaivota – como era conhecido nas ruas devido à peculiar tatuagem de uma gaivota de asas fechadas que exibia nas costas da sua mão esquerda – não paravam de perscrutar as várias tendas e bancas que se estendiam pela festividade. Um pequeno balão vermelho cruzou o ar, mesmo por cima dele, empurrado por um vento que soprava ligeiro. Era forte o suficiente para abanar o pano das tendas, mas não era de todo desagradável.
A manhã havia sido generosa para aqueles feirantes; algum dinheiro haveriam de ter!
Revolveu a mão na algibeira e sentiu o cabo de metal frio da ponta e mola que serviria de dissuasor se alguém quisesse armar-se em herói. O seu alvo estava marcado. A banca do algodão-doce tinha sido a mais concorrida; já deveria ter uns bons trocos. Sorrateiramente, aproximou-se da mulher que enrolava fios de caramelo colorido. Mostrou-lhe a faca e apontou para um saco vazio que trazia na outra mão.
— O dinheiro ou a vida! Rápido, o dinheirinho que está aí no bolso do avental, aqui para o saco… depressa!
A pobre senhora, com as mãos trémulas, prontamente atendeu à ordem e deu tudo o que tinha. O ladrão sentiu o peso do saco e mordeu a língua, como sempre fazia quando estava entusiasmado; o dia estava ganho. Uma voz vinda de trás gritou algo que o assustou. Sem saber se o grito era para ele e decidido a não ficar para descobrir, irrompeu num acelerado trote. Novamente, ouviu berros atrás de si. Agora, não tinha dúvidas: havia sido descoberto. Em pânico, correu, tentando ziguezaguear pela multidão.
Já havia estudado toda a manhã as saídas estratégicas de todo o local no caso de uma fuga de emergência. Sabia bem o caminho a tomar. Correndo ao longo do pequeno rio, avistou a pequena ponte rústica e acelerou a corrida, já antevendo o sucesso da fuga. Ao olhar para trás, viu duas pessoas no seu encalço, mas, com os olhos postos em frente, acelerou o passo. Um novo berro desviou a sua atenção para o lado quando iniciou a travessia da ponte e, tão focado estava em fugir dos seus perseguidores, que nem reparou numa pequena criança que surgiu à sua frente.
Era impossível parar. A propulsão da corrida e a adrenalina que por ele corriam obrigaram-no a chocar com força na gaiata. Algo desequilibrado, ainda tentou perceber exatamente em quem tinha batido, quando um homem bloqueou o seu percurso.
— Bolas! Hoje não é o meu dia de sorte — lamentou-se.
A sua mão ainda segurava a navalha com que tinha ameaçado a sua vítima e, num reflexo, levou-a à frente ao embater em quem lhe cortara a rota. Ambos caíram e rolaram por entre o pó até Gaivota conseguir libertar-se. A sua faca havia-se perdido na confusão, mas, nesse momento, só pensou em retomar a escapatória.
Virou, seguiu por entre duas bancas e atravessou o restante da feira, aparentemente já sem perseguidores. O alívio foi de pouca duração. Reparou em dois polícias a olharem desconfiados na sua direção. Com medo de ser interpelado, arrancou num último esforço e lançou-se num sprint final.
— Mal atravesse a rua consigo esconder-me na mata do outro lado — pensou ele — ali já não me apanham.
Tal foi o seu descuido que, ao atravessar a rua, descurou completamente qualquer precaução e nem se apercebeu do que lhe bateu.
Entre rodopios e uma dor perfurante, ainda vislumbrou a frente desfeita do carro que o atropelou. Tentou em vão levantar-se e pagou caro a tentativa. Agarrado à barriga e a gemer, olhou em volta, a tentar perceber onde estava. Sem fôlego, com dores e sem conseguir mover-se, deixou a cabeça cair no chão. A textura da estrada era áspera e exalava o característico cheiro a alcatrão, tão percetível nos dias mais quentes. Várias pernas atravessaram o seu ângulo de visão e o burburinho que se ouvia à volta começou a baixar de intensidade à medida que caía numa abençoada inconsciência. Na sua mão, torcida e ensanguentada, viu o desenho da gaivota que permanecia inalterada.
— Parece que, afinal de contas, nunca abrirás as asas… — gemeu ele.
Mesmo antes de fechar os olhos, viu algo que atribuiu ao seu estado de desfalecimento.
Parado, com as mãos na cabeça, do lado da rua de onde viera, viu-se a si mesmo!
Fechou os olhos.
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