Baú de contos: O Paradoxo da Gaivota - Capítulo 2 [Na Espiral Reversa]
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Capítulo 2
Na espiral Reversa
Gaivota abriu os olhos. Antes que algum pensamento se formasse, tudo à sua volta começou a movimentar-se com extrema rapidez. A sua cabeça foi levantada do chão, como por uma mão invisível, e o seu corpo atirado ao ar em rodopios até colidir com a frente de um carro. Perante o seu espanto, logo após o embate, começou a correr às avessas e ainda reparou na frente intacta do veículo que o atropelara. Tudo estava em reverso e numa velocidade antinatural. Em questão de segundos, recuou até à ponte, onde experimentou novamente o rebolar no chão com o homem e o encontrão com a criança. A velocidade era tal que não conseguiu sequer rever os acontecimentos; apenas viu as imagens a fugir de si até ser atirado para o chão.
Respirou fundo, como se estivesse a sentir o ar a entrar nos pulmões pela primeira vez. Estava deitado e, à sua frente, o céu azul estendia-se pelo infinito. Estendeu a mão numa tentativa de se proteger do brilho excessivo do sol e reparou que, tatuado nas costas da sua mão esquerda, mesmo por baixo da gaivota, tinha o algarismo três.
Ainda sem conseguir interiorizar toda a experiência que havia vivido, ignorou a tatuagem e levantou-se.
Reconheceu imediatamente o local: estava na feira popular, onde tinha passado toda a manhã!
— O que é isto? O que aconteceu comigo? — questionou ele, enquanto analisava cada recanto e cada pessoa que passava ao seu lado.
Encontrava-se no pequeno relvado que ladeava uma antiga fonte de pedra, junto ao gradeamento que delimitava a feira.
Contornou a fonte e deparou-se com o alinhamento de bancas e tendas, intercaladas com as várias roulotes que compunham o espaço. Um vento forte e súbito soprou, fazendo abanar todas as bandeiras e os panos das tendas numa onda que varreu todo o local.
Um balão vermelho passou por cima dele, dando-lhe um nítido déjá vu que o incomodou de uma maneira que não sabia explicar. Caminhou mais um pouco e viu, mesmo ao lado da tenda do herbanário, a banca do algodão-doce.
Sentiu o seu corpo em choque e quase sem reação ao avistar algo que só podia ser descrito como loucura.
Ele próprio. Outra vez!
Ainda incrédulo, permaneceu estático ao ver a sua figura atravessar a praça em direção à banca onde uma mulher enrolava fios de caramelo colorido. Notou estupefacto a rapidez com que o seu outro eu assaltava a mulher.
Alguém berrou do outro lado da praça, e o outro Gaivota começou a correr. Um instinto tomou conta dos seus movimentos e, sem grandes considerações, encetou a perseguição do seu sósia.
— Devo estar a sonhar ou então perdi o juízo de vez!
Um sentimento de urgência e pavor apoderou-se dele ao lembrar-se do trágico fim em que todo aquele episódio tinha culminado.
Viu claramente o Gaivota fugitivo cruzar a ponte e ficou chocado ao ver o corpo de uma pequena criança cair abaixo dela, após ter levado um forte embate do seu homónimo. Continuou e, ao chegar à ponte, viu na outra extremidade, a rebolar no chão, o outro Gaivota embrulhado com um homem.
— Meu Deus… o que é que eu fiz! — disse arrepiado ao olhar para a criança que jazia parcialmente submersa.
Reparou que a fuga do Gaivota original havia retomado. Pálido e perturbado, retomou a perseguição. Tinha de evitar que o outro atravessasse a estrada.
— Talvez assim o pesadelo acabe.
Passou pelo indivíduo que havia tentado agarrá-lo. Estava ainda prostrado, mas, ignorando-o, continuou.
Os seus pulmões pareciam que iam rebentar ao passar pelos inúmeros corredores de tendas e bancas, mas uma vontade indomável de sobrevivência impulsionou-o.
Tarde demais.
Ao irromper por trás da última tenda que marcava o fim da feira, apenas conseguiu ver o corpo do Gaivota fugitivo deitado no chão. O seu corpo estava dobrado numa posição contrária ao normal funcionamento das articulações.
Parou no passeio, atirando as mãos à cabeça, horrorizado com o que via, assim como com a lembrança bem nítida da dor que sentiu quando ocorreu o acidente.
— Isto não é real, isto não é real, isto não é real… — repetiu continuamente, como se estivesse em transe, completamente assoberbado por sentir e ver simultaneamente a sua morte.
E então…
Aconteceu!
A sensação de ser puxado como uma marioneta em câmara rápida inversa tomou conta do seu corpo e puxou-o de volta.
***
Gaivota engoliu o ar sofregamente, como se tivesse escapado de um afogamento. Estava novamente deitado e confrontado com a profundidade do azul-celeste.
Levantou-se ainda a tremer. Os seus pensamentos rodopiavam uma e outra vez. Encontrava-se noutro local; em vez do jardim onde acordara anteriormente, estava no que parecia ser as traseiras de uma roulote de comida. Diversas grades de cerveja e outros caixotes estavam espalhados, e o cheiro a lixo vindo de um saco rasgado era bem notório.
— Se não me tivessem visto, tinha sido mais um serviço sem espinhas. Bolas, agora o que eu faço?
Foi acometido de uma leve vertigem, forçando-o a amparar-se num dos caixotes. Nesse momento, foi atirado outra vez para a irrealidade de toda aquela situação.
Nas costas da sua mão esquerda brilhava uma tatuagem com o número dois.
Desta vez, tinha de impedir o seu outro eu de chegar à rua, pois não aguentaria testemunhar a própria morte mais uma vez.
Deslocou-se para o corredor central da zona em que estava, a fim de se orientar. Uma rajada de vento forte atingiu-o subitamente, levantando papéis soltos e o tecido das tendas numa dança ondulatória. Ele conhecia bem aquele vento. Ao olhar para cima, lá estava: o balão vermelho na sua viagem a navegar o mar etéreo.
Correu como nunca; era preciso impedir a fatalidade que se iria desenrolar dali a uns minutos. Ao chegar ao corredor do algodão-doce, viu o Gaivota original a arrancar o dinheiro da mão da vendedora e colocá-lo no saco. Gritou-lhe:
— Ei, espera!
O seu sósia sobressaltou-se ao ouvir o grito e trotou rapidamente na direção da rota de fuga.
— Não! Cheguei tarde outra vez! — pensou, enquanto continuava a correr e bradava — Não atravesses a ponte… vai à volta…
A respiração estava ofegante demais para conseguir dizer qualquer outra palavra.
Tudo se repetiu numa fotocópia precisa: o atravessar da ponte, a menina a cair no riacho, a escaramuça com a outra pessoa e, por fim, o retomar da escapatória.
Exausto, Gaivota parou no meio da ponte.
— É inútil, vai tudo acontecer como da outra vez.
Ajoelhou-se no chão de madeira e cobriu o rosto com as mãos, num choro amargo. Não conseguiria ver a sua própria morte novamente.
Lembrou-se da criança.
Olhou para baixo e viu-a imóvel, coberta parcialmente pela água. Sem reação, limitou-se a observar o homem com quem havia lutado levantar-se e dirigir-se para a margem abaixo da ponte. Caminhava lentamente, com a mão na barriga. Gaivota reconheceu imediatamente o cabo cromado da sua navalha, que se destacava na mancha de sangue que se espalhava pela camisola.
A faca era sua, assim como agora o era o peso da culpa.
Viu o homem a descer a margem, deixando um rasto de pingas encarnadas. Continuou imóvel ao vê-lo a tentar socorrer a criança. O indivíduo, notoriamente exausto e sem vigor, puxou a menina para si, tirando-a da água. Repousou a nuca numa pedra e olhou fixamente para ele, mesmo antes de fechar os olhos.
Gaivota levantou-se. Olhou para o número dois tatuado na sua mão.
— Se realmente tiver outra oportunidade, juro que não vou deixar isto acontecer. Só queria um dinheirinho rápido… nunca quis mal a ninguém.
Fitou o céu uma vez mais e aguardou que a viagem reversa o levasse de volta.
***
O respirar ofegante impeliu-o a levantar-se de um salto. Não tinha tempo a perder. Olhou para as costas da sua mão esquerda e anuiu em concordância. Como esperado, o algarismo um destacava-se num brilho notório. Sentiu a já familiar rajada da ventania súbita e pesquisou no céu pelo balão vermelho numa tentativa de se orientar. Desta vez, estava fora dos limites da feira, do outro lado da vedação que circunscrevia parte do evento.
Lá estava o balão. Agora, tinha mais ou menos a noção de onde estava.
Longe demais para chegar a tempo!
Entrou em pânico. Algo dentro dele reforçou a noção de que esta seria a última oportunidade.
Estava disposto a fazer tudo o que fosse preciso.
Alguém passou por ele de bicicleta e Gaivota não deixou escapar a oportunidade. Com um puxão, atirou o ciclista ao chão, roubando-lhe a bicicleta num movimento contínuo e fluido.
Pedalou pelo passeio fora até conseguir entrar na entrada sul e continuou a alta velocidade, tentando evitar os vários transeuntes que descontraidamente desfilavam entre as atrações.
— Já consigo ver a ponte! Talvez ainda chegue a tempo!
Essa esperança deu-lhe o alento necessário para vencer a íngreme subida que o separava do destino.
Ali estava a sua outra figura, prestes a entrar na ponte!
— Espera! — gritou. — Cuidado com a miúda, não vás por aí!
Ainda a pedalar, observou abismado o Gaivota original a olhar na sua direção e, distraído, embater na insuspeita criança.
Com um movimento ágil, desmontou da bicicleta em andamento e precipitou-se para o riacho. Ouviu claramente o splash do corpo a cair na água.
Com a água abaixo dos joelhos, atravessou a leve torrente e, pegando na criança, levou-a ao colo. Subiu a margem oposta até chegar ao caminho onde o indivíduo esfaqueado tentava a custo levantar-se. O Gaivota original já havia retomado a escapada.
Posou a menina no chão com cuidado. A sua cabeça sangrava, manchando o cabelo loiro num vermelho inquietante.
— Alguém ajude, temos gente ferida… — gritou, olhando para um grupo de pessoas que falavam a alguns metros de distância.
— Não se mexa, senhor, a menina está comigo, já chamei por ajuda. — falou Gaivota, dirigindo-se ao homem que se contorcia, agarrado à barriga.
Logo, várias pessoas se juntaram à volta, tentando ajudar. Colocaram uma camisola dobrada a servir de almofada para a cabeça da pequena, enquanto outro ligava a pedir uma ambulância.
A menina estava inconsciente, mas respirava. O homem também; duas pessoas ajudavam-no a pressionar o ferimento e falavam numa tentativa de o manter consciente.
— Em breve vou morrer atropelado — pensou — mas ao menos dei uma possibilidade de sobrevivência a estas pessoas que nada tinham a ver. No final de tudo, eu fui o único responsável por esta confusão. Os meus perseguidores, a pessoa que me distraiu quando passei a ponte e embati na menina… Nas várias tentativas de me impedir acabei por ser o causador da minha própria destruição. Talvez deva mesmo pagar com a vida.
Ainda ao lado da criança, foi apanhado pelo já familiar turbilhão reverso.
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